por um fio: tipologia e função do
conjunto de cossoiros de cabeça
de vaiamonte (monforte/portugal)
Teresa Rita Pereira / FCT/ Uniarq / teresa.rita.pereira@gmail.com
RESUMO
O conjunto de cossoiros do sítio arqueológico de Cabeça de Vaiamonte apresenta-se como um dos mais numerosos
da península ibérica, totalizando 1660 exemplares depositados no Museu Nacional de Arqueologia. Apesar de se
encontrarem desprovidos de contextos estratigráficos, o seu lato número permitiu a criação de uma tipologia
com base na forma, fabrico, técnica e motivos decorativos, peso e também pela utilização de grafitos, com os
quais poderemos delinear novas questões que se prendem com a função deste objecto. A fiação será obviamente
a função primária, no entanto deverá ser ponderada uma outra função para este conjunto, que será facilmente
compreendida quer pelo número insólito e inusitado de exemplares quer pela profusão decorativa (43%).
ABSTRACT
The set of spindle whorls from the archaeological site of Cabeça de Vaiamonte presents itself as one of the
most numerous of the Iberian Peninsula with a total of 1660 specimens deposited in the Museu Nacional de
Arqueologia. Despite being devoid of stratigraphic contexts, his broad number allowed the creation of a typology
based on the shape, manufacturing, technical and decorative motifs, weight and also by the use of inscribed
signs, with which we can design new issues related to the function of this object. Spinning will obviously be the
primary function, however it should be considered another function for this set, that will be easily understood
by both unexpected and unusual number of specimens or for the decorative profusion (43%).
O sítio arqueológico de Cabeça de Vaiamonte, localizado no distrito de Portalegre, concelho de Monforte (Coordenadas UTM: Lat. 39º 5´ 22”, Long. 7º
38´ 35”, C.M.P. 1: 25000, folha 384, Monforte), encontra-se num outeiro isolado que se destaca claramente na paisagem pela sua implantação a 393 metros de altitude, enquadrado pelas bacias do Sorraia/
Tejo e do Caia/Guadiana. Constitui um dos mais
paradigmáticos sítios de habitat do nordeste alentejano e foi alvo de várias campanhas de escavações arqueológicas dirigidas por Manuel Heleno entre 1951 e
1964 (Fabião, 1998, pp. 151-152). Apesar do vasto conjunto artefactual recuperado e hoje depositado no
Museu Nacional de Arqueologia1, os dados de leitura
1. Desejo expressar o meu profundo agradecimento ao Museu Nacional de Arqueologia que viabilizou este projecto
de estudo; à orientação do Prof. Dr. Carlos Fabião; ao Prof.
Dr. José Antonio Correapelo incentivo na produção de um
catálogo de grafitos deste conjunto; à disponibilidade do
Prof. Dr. Amílcar Guerra e do Dr. António Marques de Faria
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Arqueologia em Portugal – 150 Anos
arqueográfica e estratigráfica do sítio apresentam-se
de difícil extrapolação, uma vez que o registo efectuado pelos seus principais intervenientes – Manuel
Heleno e João Lino da Silva, limita, em muito, a tentativa de relacionar os materiais e a realidade ocupacional deste espaço. Desconhecem-se por isso com
exactidão quais as zonas intervencionadas, que área
abrangiam e se se terão cingido à encosta Sudeste do
cabeço (Fig. 1). Apesar de todas estas dificuldades, e
mesmo impossibilidades, a tese de doutoramento de
Carlos Fabião (1998) propôs o provável faseamento
de ocupação do sítio.
para análise de alguns grafitos; à Prof.ª Dr.ª Catarina Viegas
e à Prof.ª Dr.ª Inês Vaz Pinto pela ajuda na identificação de
alguns aspectos dos grupos técnicos e ao Dr. João Almeida
por ter realizado as fotografias das peças aqui apresentadas.
O CONJUNTO DE COSSOIROS E A
NECES SIDADE DE UMA ABORDAGEM
TIPOLÓGICA
Cabeça de Vaiamonte apresenta um dos maiores
conjuntos de cossoiros conhecido na Península Ibérica. Trata-se de um conjunto de 1660 cossoiros cerâmicos e líticos (0,5%), que foram agrupados por
grupos de fabrico, forma, metrologia, técnica decorativa aplicada e contexto (apesar das referências
generalistas).
Os exemplares cerâmicos parecem ter sido produzidos quer manualmente (35,5%), apresentando nestes casos uma notória assimetria, quer com recurso
a técnicas de moldagem (64,5%). As marcas de torno não foram identificadas em nenhum dos exemplares mas a simetria de alguns destes objectos parece indiciar esta prática. As perfurações deverão ter
sido obtidas por rotação rápida com instrumentos
de cariz diverso: cilíndricos e cónicos, no caso de
perfurações circulares ou ovaladas; e piramidais ou
paralelepipédicos, nas perfurações quadrangulares.
O diâmetro destas perfurações é extremamente variável sendo o mais pequeno de 2 mm e o maior de
19 mm. Em muitos dos cossoiros surgem imperfeições, sob a forma de relevo ao redor destes orifícios,
que sugerem uma perfuração após a secagem da peça
mas antes da sua cozedura. Já nos cossoiros líticos ou
naqueles que foram obtidos através de reaproveitamentos cerâmicos (2 exemplares), o orifício é caracterizado pela sua forma bitroncocónica. Outros são
os casos em que os cossoiros ou não são perfurados
(variante 5), ou recebem apenas marcas de perfuração que não chegam a ser finalizadas e por isso não
são transversais a toda a peça (variante 6). Em ambos
os casos estaremos perante objectos que não exerceram a função primária para a qual estariam a ser produzidos: a de sujeição à base do fuso para fiação.
Luís Berrocal-Rangel (2003, p. 225) sugere que estes
exemplares que não possuem orifícios transversais
à peça (variante 6) ou que apresentam o eixo de rotatividade descentrado (18,9% dos casos de Capote e
7,66% em Cancho Roano), impedem ou dificultam a
sua função no fuso, podendo tratar-se de elementos
inseridos no topo da roca. No caso da nossa variante 5, nem essa função poderá ser apontada, pelo que
desconhecemos qual o motivo para a total ausência
de orifícios.
O estudo formal e de variedade tipológica (Fig.
2) tem por base o sistema aberto criado por Zaida
Castro Curel (1980, p. 138) para os cossoiros dos povoados ibéricos e alterado por Maria Luisa De Sus
(1986, pp. 186-188). Este sistema baseia-se nas formas geométricas primárias: cone, esfera e cilindro.
O conjunto de Cabeça de Vaiamonte veio acrescentar os tipos em calote esférica (H.) e em dupla calote
esférica (I.); e ainda os subtipos simétrica bicôncava
(D.d.) e cilíndrico -cónica assimétrica côncava (E.e.).
Tal como na maioria dos conjuntos de cossoiros provenientes de povoados proto-históricos, Cabeça
de Vaiamonte assiste a uma primazia das formas
bitroncocónicas, que a nível funcional são muito
mais eficientes do que as cónicas e/ ou cilíndricas (Berrocal-Rangel, 2003, p. 224). As formas bitroncocónicas simétricas são as mais frequentes
nos conjuntos de Capote (55,9%), Cancho Roano
(54,51%) (Ibidem) e Puig de St. Andreu, Ullastret
(37,8%) (Castro Curel, 1980, p. 136), enquanto em
Los Castellares (61,4%) (De Sus, 1986, p. 187), Puig
d´en Rovira/ La Creueta (62,5%), Castell de la
Fosca/ Palamós (54,5%), Cabezo de Alcalá/ Azaila
(80%) (Castro Curel, 1980, pp. 136 e 140) e Cabeço de
Vaiamonte (50,3%) as formas bitroncocónicas assimétricas são maioritárias.
A análise de fabricos teve por base apenas a observação da superfície exterior uma vez que apenas um reduzido número de peças se encontram parcialmente
fragmentadas. Com base nesta avaliação macroscópica foram definidos seis grupos técnicos, dos quais
os primeiros cinco representam pastas argilosas
não calcárias que deverão representar argilas locais-regionais compostas por minerais brancos, sílicas e
micas. Apenas o grupo 6 é formado por dois exemplares que se distinguem dos demais, uma vez utilizarem pasta calcária/ caulínitica. Um dos exemplares
parece tratar-se de um fundo de cerâmica de paredes
finas que foi reaproveitado como cossoiro, uma vez
que são visíveis as marcas de polimento das paredes
junto ao fundo de pé anelar e a perfuração do orifício, de cariz bitroncocónico, indicia que o mesmo foi
efectuado pós-cozedura.
O grupo 1 (21%) é talvez o grupo mais característico
do conjunto, devido à presença de elementos não
plásticos de grande e média dimensão sob a forma
de micas prateadas que lhe conferem um brilho
único, acentuado pelas superfícies polidas, que se
distinguem facilmente dos restantes grupos que
apresentam superfícies alisadas, que só em alguns
casos recebem uma aguada laranja ou avermelhada.
O modo de cozedura A é francamente maioritário,
682
com as pastas de coloração alaranjada e beje-acastanhada a representarem 77,5% do conjunto, face ao
modo de cozedura B, de pastas cinzentas ou enegrecidas, com uma expressividade de 22,5%.
Um dos aspectos importantes no estudo destes
conjuntos é o do peso destes objectos, uma vez que
“(…) a espessura do fio depende do peso do fuso(…)”
(Castro Curel, 1980, p. 142). No caso de Cabeça de
Vaiamonte (Fig. 3), e à semelhança do conjunto de
Los Castellares (De Sus, 1986, p. 191), o intervalo de
peso entre os 15 e os 20 gr. é o mais frequente (22,1%),
seguido dos pesos entre 20 e 25 gr. (18,5%). De qualquer forma, e apesar de uma notável variabilidade de
pesos entre 1,89 e 111,15 gr, a verdade é que à semelhança do conjunto de Capote (Berrocal-Rangel &
alli, 1994, p. 212), assistimos a uma notável concentração nos valores 16, 18-20 e 24-25 gr.
TÉCNICAS DECORATIVAS APLICADAS
AOS COSSOIROS DESTE CONJUNTO
As técnicas decorativas aqui apresentadas foram
aplicadas às distintas faces dos cossoiros: no topo
(A.), na aresta superior (B.), na aresta inferior ou
lateral (C.) e na base ou fundo (D.). No caso deste
conjunto as decorações surgem maioritariamente
no topo e na aresta superior das peças, uma vez que
seria a zona superior do cossoiro que formaria o encaixe no fuso, e que ficaria visível para quem fiasse
usufruísse dessa decoração. A orientação das peças
é facilmente reconhecível quer pela decoração, quer
pela concentração de elementos não plásticos e pelo
desgaste nas bases dos objectos ou pelo diâmetro do
orifício para introdução no fuso (topo mais largo,
base mais estreita).
No caso do conjunto de cossoiros de Los Castellares
a decoração surge em 71,6% dos cossoiros, sendo que
as técnicas utilizadas se circunscrevem à incisão e impressão (De Sus, 1986, p. 192), já em Capote, 45,66%
do conjunto apresenta decoração (Berrocal-Rangel,
2003, p. 225). Esta representatividade aproxima-se
daquela a que assistimos neste conjunto, com 43%
dos cossoiros a apresentarem decoração. As técnicas decorativas utilizadas, segundo as normas de
inventário para a cerâmica utilitária em Arqueologia
(Cruz & alii, 2007), foram bastante variadas, sendo
que a incisão (42%), o puncionamento (26%) e a aplicação mista destas duas técnicas (10%) se destacam
das demais. Curioso ainda notar a presença de um
cossoiro com decoração impressa / “estampilhada”
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Arqueologia em Portugal – 150 Anos
por matriz quadrangular preenchida a malha fina, semelhante a muitos fragmentos cerâmicos decorados
com esta técnica (Arnaud & alii, 1974-77).
MARCAS DE LITERACIA OU MEROS
ACASOS? CATALOGAÇÃO DOS GRAFITOS
IDENTIFICADOS
As inscrições e os grafitos sobre cerâmica, nomeadamente sobre cossoiros, são efectuados com recurso a técnicas distintas, sendo reconhecida a utilização
do pontilhado efectuado com o puncionamento de
um objecto afilado ou a técnica linear com recurso à
incisão da peça. Estas técnicas poderão ter sido utilizadas ante coctionem ou post coctionem, interpretação esta que nos poderá facultar alguns dados sobre
a literacia de quem produz ou utiliza estes objectos.
Os signos alfabéticos ibéricos surgem representados
com frequência, como nos comprovam os achados
de Castell de Palamós/Gerona onde surge um cossoiro inscrito com três marcas de pontuação que
formam as possíveis palavras (Prescot, 1980, p. 147),
Azaila, Margalef com 13 signos inscritos no topo de
um cossoiro, Castell de La Fosca em que um exemplar apresenta um total de 17 signos divididos por três
grupos de palavras, San Antonio de Calaceite, Las
Madrigueras e Los Castellares (De Sus, 1986, p. 195).
Na área de âmbito celtibérico conhecem-se até ao
momento cinco cossoiros inscritos com pelo menos uma palavra em escrita celtibérica: Ségeda, Botorrita, Monreal de Ariza e Las Ruedas de Pintia (De
Bernardo Stempel & alli, 2010, pp. 405-406). Este
mesmo signário celtibérico também parece ter sido utilizado isoladamente sob suporte cerâmico como nos demonstram, entre outros, os casos de Castrejón de Capote onde surgem dois signos em uma
panela decorada (Berrocal-Rangel, 1989, p. 290, Fig.
32, n.º 9) e o de Cerro de El Berrueco (Salamanca)
com um fragmento de cossoiro exumado de um
contexto balizado entre o século II a.C. e I d.C., que
apresenta dois grafitos incisos no topo que parecem
identificar-se com os signos de escrita celtibérica n e
u. No entanto, e uma vez que não se conhecem inscrições pré-romanas em Salamanca, os autores deste
artigo não arriscam conjecturas acerca da escrita destes grupos, pois como afirmam, trata-se de uma evidência sobre um objecto “portátil” (López Jiménez &
alii, 2009, p. 122).
Apesar de o uso do alfabeto não ser generalizado a nível popular, e de se conhecerem alguns signos e talvez
se tentasse imitar outros (De Sus, 1986, p. 206), será
curioso notar a repetição de símbolos, signos e esquemas decorativos utilizados nestes conjuntos peninsulares, que não se encontram restringidos a uma
área, surgindo em áreas tanto de influência ibérica
como celtibérica. No entanto, e apesar de já ter sido
expresso por muitos investigadores (vide Berrocal-Rangel, 2003, p. 237) que existe um conjunto de factores que afastam uma utilização exclusiva destes objectos para fiação, a verdade é que o desconhecimento
do seu verdadeiro significado e ausência de leituras
viáveis para estes signos isolados, tem impossibilitado a atribuição de novas funções. A leitura de algumas
inscrições sobre cossoiros galos tardios, onde surgem
pequenas frases e dedicações de carácter erótico tem
servido de guia para a interpretação dos exemplares
que se apresentam com inscrições ibéricas e celtibéricas (De Bernardo Stempel & alli, 2010, p. 405).
No caso do conjunto de Cabeça de Vaiamonte, foi
um dos cossoiros com maior número de grafitos
que proporcionou uma análise mais cuidada a todos
os outros signos entretanto reconhecidos em outros
objectos deste tipo. Esse cossoiro apresenta no topo
da peça um círculo inciso, com quatro linhas rectas
transversais que se dirigem ao orifício e que formam as divisões que recebem os sete signos incisos
(Fig. 4). Esta divisão do espaço, bem como os signos,
foram efectuados num momento anterior à cozedura (ante coctionem), uma vez que é visível o excesso
e transbordo de argila em redor do orifício superior,
que terá sido efetuado após a incisão dos grafitos
que em alguns casos surgem parcialmente cobertos.
A fotografia deste cossoiro foi enviada a alguns investigadores (Prof. Dr. Amílcar Guerra, Dr. António
Marques de Faria, Prof. Dr. Joan Ferrer i Jané e Prof.
Dr. José Antonio Correa - desde já agradeço a disponibilidade de todos), sem que fosse possível avançar com qualquer leitura. Não obstante, a opinião
do Prof. Dr. José Antonio Correa é a de que nesta
«pseudo -inscrição» surgem signos que podem ser
identificados com o das escritas meridionais e ibérica e que pela extensão de grafitos se deduz claramente que serão textos escritos e não meras marcas
de propriedade, ainda que, num primeiro momento
não possam ser entendidos2.
2. Opinião transmitida através de e-mail onde o Prof. Dr.
José Antonio Correa também sugere a criação de um catálogo de grafitos com indicação de técnicas utilizadas:
incisão/ pontilhado, ante/post coctionem.
Esta extensão é marcada pelos 89 grafitos identificados (Figs. 8 e 9), dos quais 29 apresentam-se
isolados, 12 em par, 18 com três ou mais signos, 24
com repetição do mesmo signo e 6 em sequência
alternada entre dois signos, sendo que estes signos
parecem pertencer quer ao signário ibérico como ao
celtibérico. A maioria dos grafitos recorreu à incisão
(85 exemplares – v. Fig.5), apesar de um conjunto diminuto ter sido efectuado com recurso ao puncionamento sob a forma de pontilhado (4 exemplares
– v. Fig.6). Estas técnicas foram utilizadas maioritariamente ante coctionem (68 exemplares), apesar
de um conjunto significativo de cossoiros (21 exemplares) ter recebido estes signos num momento post
coctionem, facilmente reconhecíveis pelas linhas
rectilíneas (Fig. 7) que contrastam fortemente com
as linhas curvas efectuadas pré-cozedura. A disposição destes grafitos é mais expressiva na aresta inferior ou lateral (C: 47%), seguida da aresta superior
(B: 40%) e do topo (A: 13%), não tendo sido identificado qualquer grafito na base (D) destes objectos.
POR UM FIO? A ALEGORIA DA EXPRESSÃO
NUMÉRICA
Tal como referido por outros investigadores, os cossoiros representam o elemento associado à actividade
têxtil mais numeroso entre os sítios proto-históricos
peninsulares (Berrocal-Rangel, 2003, p. 215). A sua
relativa abundância, a que se soma o facto de muitas
vezes serem recuperados em conjuntos confinados
a um mesmo espaço, fez com que por vezes fossem
confundidos com pesos de tear vertical, apesar de
não oferecerem a uniformidade de peso que seria necessária para o seu funcionamento (Ibidem).
Entre estes conjuntos mais numerosos e emblemáticos refira-se o exemplo de 127 exemplares,
dos quais 58 decorados, dispostos sobre o altar de
Castrejón de Capote e que num lugar como este nos
fazem supor funções distintas para além da fiação
(Berrocal-Rangel, 1989, p. 254) podendo ter correspondido a funções mais complexas, cultuais ou
comerciais (Idem, 2003, p. 237). Para além dos conjuntos de várias dezenas procedentes da Casa 2 do
povoado celtibérico de Los Castellares (Zaragoza)
que se encontravam dispostos num suposto colar
ou ábaco, ou os 343 exemplares recuperados nas
escavações do Edifício A do Palácio -Santuário de
Cancho Roano (Idem: 216).
Tal como facilmente poderemos constatar, nada que
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se aproxime do número de cossoiros recuperados
em Cabeça de Vaiamonte. Este número excepcional
e extravagante de elementos de fiação faz-nos questionar, à semelhança de outros investigadores que se
debruçaram sobre conjuntos bem mais diminutos,
qual a verdadeira função destes objectos.
A total ausência de qualquer referência a uma contextualização estratigráfica, expressa por 38,9% do
conjunto, dificulta em muito as leituras que poderíamos efectuar, pelo que neste caso, cingimo -nos à melhor análise possível dos dados que foram
disponibilizados. Uma vez que não se conhecem
plantas de localização das áreas escavadas, foi uma
análise metódica dos cadernos de campo produzidos
entre 1952 e 1958 pelo encarregado das escavações,
João Lino da Silva (Silva, 1952/1958), que permitiu
contabilizar o número de referências efectuadas a
este tipo de achado e afastar definitivamente a hipótese de parte deste conjunto poder pertencer a
outro sítio arqueológico que era escavado em simultâneo, a villa romana de Torre de Palma. Esta contabilização de referências explícitas a “cossoiros”
nos relatórios permitiu aferir que juntamente com a
designação “cerâmica” (que se refere genericamente
a fragmentos de cerâmica comum, uma vez que o
autor dos cadernos de campo diferencia a cerâmica
“manual”, “grosseira”, “pintada”, “grega” - campaniense?, “ornamentada” - estampilhada?) representa a categoria artefactual mais mencionada.
No total foram isolados 424 contextos distintos que
englobam quer contextos estratigráficos referentes a níveis artificiais (p.e. “camada 25-50”), quer
contextos mais generalistas (p.e. “mandei abrir
uma nova Sonda”) ou mesmo, no caso de alguns
relatórios, a referência exclusiva a um novo dia de
trabalho. Os “cossoiros” surgem em 277 dos 424
contextos identificados, quase equiparados com a
“cerâmica” que surge em 284. No entanto, nos anos
de 1953 e 1954 as referências aos “cossoiros” superam qualquer outra categoria de artefactos, sendo
assim o achado mais frequente deste sítio arqueológico nesses anos. Note-se ainda que o autor dos cadernos começa por contabilizar os cossoiros quando estes surgem em número inferior a 12, sendo que
sempre que o número é superior surgem os pronomes: “poucos”, “alguns” ou “muitos”.
Para além da expressividade numérica, que não encontra paralelo em nenhum outro sítio alentejano
(Estrela, 2010, pp. 68-69), junte-se o facto de 43% do
conjunto ter recebido decoração e 5,4% apresentar
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Arqueologia em Portugal – 150 Anos
um ou mais grafitos. O facto de surgirem traços alfabéticos pode-nos levar a pensar em uma mensagem
cuja estrutura nos escapa, como uma forma de escrita que utiliza elementos gráficos para a sua expressão
que o emissor/ receptor conhece ou reconhece, seja
com todo o seu significado ou já desprovido dele (De
Sus, 1986, p. 206). Segundo Luís Berrocal-Rangel
(2003, p. 237), esta simbologia chega-nos desprovida de sentido e por isso ignoramos tratar-se de uma
linguagem exclusiva destes objectos, que poderá até
representar um sistema de contabilidade.
Para este sistema de contabilidade muitos investigadores têm tentado uma aproximação funcional
devido à concentração em determinados valores de
peso. No entanto, e apesar de esta ser uma ideia tentadora, o que este conjunto de 1660 cossoiros veio
confirmar é que apesar de algumas concentrações,
assistimos a uma frequência dispersa por todos os
valores entre os 2 e 70 gr. Esta dispersão poderá ser
facilmente justificada pelo próprio processo de produção, sendo que a preparação, secagem e cozedura
destes objectos poderá explicar as oscilações de peso, mesmo entre cossoiros que foram produzidos
no mesmo molde – como assistimos em alguns
destes objectos. Ou seja, a padronização metrológica poderá ter valores aproximados mas não consegue valores absolutos próximos, assistindo a variações acentuadas.
Uma vez que desconhecemos os contextos estratigráficos destes achados não podemos avançar com
propostas cronológicas estanques, apesar de o tipo de formas e grafitos aplicados (com aquilo que
parecem ser signos ibéricos e celtibéricos) serem
coerentes com os conjuntos de cossoiros exumados
de vários povoados ibéricos e celtibéricos, e muito
semelhante ao conjunto datado entre o século IV e II
a.C. depositado em Castrejón de Capote (Berrocal-Rangel, 1989, p. 252). Esta semelhança ocorre quer
na temática decorativa como na proporção de grafitos (signos ibéricos) representados em 3% do conjunto (Berrocal-Rangel, 1994, p. 223). Apesar desta
evidente associação a contextos proto -históricos,
uma vez que em época romana ocorre o aparente
desaparecimento deste objecto (De Sus, 1986, p.
184), é possível que este conjunto reflicta não só
uma larga diacronia como também uma distribuição espacial muito distinta como nos comprovou a
análise dos cadernos de campo.
A função deste número inusitado de cossoiros neste
sítio arqueológico continuará a ser uma incógnita,
uma vez que a fiação pressupõe a utilização máxima
de dois cossoiros por utilizador: um que funcionaria
como contrapeso no fuso e outro aplicado na roca.
Apesar de a actividade têxtil parecer irrefutável em
Cabeça de Vaiamonte, uma vez que foram exumados
um pente de cardar, 75 agulhas/sovelas e 24 pesos
de tear, nada parece justificar esta presença excessiva de elementos de fiação que pressuponham um
mínimo de 830 utilizadores. Talvez a futura leitura
e interpretação dos grafitos que aqui se apresentam,
e que serão alvo de um estudo mais pormenorizado,
permita avançar com algumas hipóteses que neste
momento poderão apontar para um carácter ritual
que a ausência de contextos não nos permite acentuar, apesar da grande concentração cerâmica registada neste sítio assemelhar-se a outros depósitos
votivos, como Garvão ou Castrejón de Capote.
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Herdade de Torre de Palma, Cabeço de Vaiamonte e Monte do
Pombal. Arquivo Pessoal Manuel Heleno/MNA.
SILVA, João Lino da (1956) – Escavações na Cabeça de Vaiamonte (Alentejo). Arquivo Pessoal Manuel Heleno / MNA.
SILVA, João Lino da (1957) – Relatório das Escavações na
Cabeça de Vaiamonte (Alentejo). Arquivo Pessoal Manuel
Heleno/MNA.
SILVA, João Lino da (1958) –[Escavações] na Cabeça de Vaiamonte (Alentejo). Arquivo Pessoal Manuel Heleno/ MNA.
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Figura 1 – O sítio de Cabeça de Vaiamonte.
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Arqueologia em Portugal – 150 Anos
Figura 2 – Tipologia do conjunto de cossoiros de Cabeça de Vaiamonte – alterado a partir de CASTRO CUREL, 1980: 138,
modificado por DE SUS, 1986: 187, Figura I.
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Figura 3 – Gráfico com representação do número de cossoiros por intervalo de peso (gr.).
Figura 4 – Pormenor do topo de cossoiro que apresenta vários
grafitos incisos ante coctionem com delimitação circular,
divisão do espaço onde surgem grafitos com orientações
distintas e uma marca de pontuação. João Almeida.
Figura 5 – Pormenor da aresta superior de cossoiro que
apresenta vários grafitos incisos ante coctionem com uma
orientação centrípeta (onde se reconhece o signo ka). João
Almeida.
Figura 6 – Pormenor da aresta superior de cossoiro que
apresenta vários grafitos pontilhados ante coctionem com
uma orientação centrípeta. João Almeida.
Figura 7 – Pormenor da aresta inferior de cossoiro que
apresenta um grafito (signo be) isolado e inciso postcoctionem. João Almeida
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Arqueologia em Portugal – 150 Anos
Figura 8 – Tabela de grafitos isolados (30), em pares (12) e em sequências alternadas (6) presentes nos cossoiros de Cabeça
de Vaiamonte, com indicação de: número de exemplares; execução ante- ou post-coctionem e localização do grafito no
cossoiro (A- topo, B - aresta superior, C-aresta inferior ou lateral, D - base).
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Figura 9 – Tabela de grafitos repetidos (24) e distintos - em número superior a três (18) presentes nos cossoiros de Cabeça de
Vaiamonte, com indicação de: número de exemplares; execução ante- ou post-coctionem e localização do grafito no cossoiro
(A- topo, B- aresta superior, C-aresta inferior ou lateral, D - base).
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