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por um fio: tipologia e função do conjunto de cossoiros de cabeça de vaiamonte (monforte/portugal) Teresa Rita Pereira / FCT/ Uniarq / teresa.rita.pereira@gmail.com RESUMO O conjunto de cossoiros do sítio arqueológico de Cabeça de Vaiamonte apresenta-se como um dos mais numerosos da península ibérica, totalizando 1660 exemplares depositados no Museu Nacional de Arqueologia. Apesar de se encontrarem desprovidos de contextos estratigráficos, o seu lato número permitiu a criação de uma tipologia com base na forma, fabrico, técnica e motivos decorativos, peso e também pela utilização de grafitos, com os quais poderemos delinear novas questões que se prendem com a função deste objecto. A fiação será obviamente a função primária, no entanto deverá ser ponderada uma outra função para este conjunto, que será facilmente compreendida quer pelo número insólito e inusitado de exemplares quer pela profusão decorativa (43%). ABSTRACT The set of spindle whorls from the archaeological site of Cabeça de Vaiamonte presents itself as one of the most numerous of the Iberian Peninsula with a total of 1660 specimens deposited in the Museu Nacional de Arqueologia. Despite being devoid of stratigraphic contexts, his broad number allowed the creation of a typology based on the shape, manufacturing, technical and decorative motifs, weight and also by the use of inscribed signs, with which we can design new issues related to the function of this object. Spinning will obviously be the primary function, however it should be considered another function for this set, that will be easily understood by both unexpected and unusual number of specimens or for the decorative profusion (43%). O sítio arqueológico de Cabeça de Vaiamonte, localizado no distrito de Portalegre, concelho de Monforte (Coordenadas UTM: Lat. 39º 5´ 22”, Long. 7º 38´ 35”, C.M.P. 1: 25000, folha 384, Monforte), encontra-se num outeiro isolado que se destaca claramente na paisagem pela sua implantação a 393 metros de altitude, enquadrado pelas bacias do Sorraia/ Tejo e do Caia/Guadiana. Constitui um dos mais paradigmáticos sítios de habitat do nordeste alentejano e foi alvo de várias campanhas de escavações arqueológicas dirigidas por Manuel Heleno entre 1951 e 1964 (Fabião, 1998, pp. 151-152). Apesar do vasto conjunto artefactual recuperado e hoje depositado no Museu Nacional de Arqueologia1, os dados de leitura 1. Desejo expressar o meu profundo agradecimento ao Museu Nacional de Arqueologia que viabilizou este projecto de estudo; à orientação do Prof. Dr. Carlos Fabião; ao Prof. Dr. José Antonio Correapelo incentivo na produção de um catálogo de grafitos deste conjunto; à disponibilidade do Prof. Dr. Amílcar Guerra e do Dr. António Marques de Faria 681 Arqueologia em Portugal – 150 Anos arqueográfica e estratigráfica do sítio apresentam-se de difícil extrapolação, uma vez que o registo efectuado pelos seus principais intervenientes – Manuel Heleno e João Lino da Silva, limita, em muito, a tentativa de relacionar os materiais e a realidade ocupacional deste espaço. Desconhecem-se por isso com exactidão quais as zonas intervencionadas, que área abrangiam e se se terão cingido à encosta Sudeste do cabeço (Fig. 1). Apesar de todas estas dificuldades, e mesmo impossibilidades, a tese de doutoramento de Carlos Fabião (1998) propôs o provável faseamento de ocupação do sítio. para análise de alguns grafitos; à Prof.ª Dr.ª Catarina Viegas e à Prof.ª Dr.ª Inês Vaz Pinto pela ajuda na identificação de alguns aspectos dos grupos técnicos e ao Dr. João Almeida por ter realizado as fotografias das peças aqui apresentadas. O CONJUNTO DE COSSOIROS E A NECES SIDADE DE UMA ABORDAGEM TIPOLÓGICA Cabeça de Vaiamonte apresenta um dos maiores conjuntos de cossoiros conhecido na Península Ibérica. Trata-se de um conjunto de 1660 cossoiros cerâmicos e líticos (0,5%), que foram agrupados por grupos de fabrico, forma, metrologia, técnica decorativa aplicada e contexto (apesar das referências generalistas). Os exemplares cerâmicos parecem ter sido produzidos quer manualmente (35,5%), apresentando nestes casos uma notória assimetria, quer com recurso a técnicas de moldagem (64,5%). As marcas de torno não foram identificadas em nenhum dos exemplares mas a simetria de alguns destes objectos parece indiciar esta prática. As perfurações deverão ter sido obtidas por rotação rápida com instrumentos de cariz diverso: cilíndricos e cónicos, no caso de perfurações circulares ou ovaladas; e piramidais ou paralelepipédicos, nas perfurações quadrangulares. O diâmetro destas perfurações é extremamente variável sendo o mais pequeno de 2 mm e o maior de 19 mm. Em muitos dos cossoiros surgem imperfeições, sob a forma de relevo ao redor destes orifícios, que sugerem uma perfuração após a secagem da peça mas antes da sua cozedura. Já nos cossoiros líticos ou naqueles que foram obtidos através de reaproveitamentos cerâmicos (2 exemplares), o orifício é caracterizado pela sua forma bitroncocónica. Outros são os casos em que os cossoiros ou não são perfurados (variante 5), ou recebem apenas marcas de perfuração que não chegam a ser finalizadas e por isso não são transversais a toda a peça (variante 6). Em ambos os casos estaremos perante objectos que não exerceram a função primária para a qual estariam a ser produzidos: a de sujeição à base do fuso para fiação. Luís Berrocal-Rangel (2003, p. 225) sugere que estes exemplares que não possuem orifícios transversais à peça (variante 6) ou que apresentam o eixo de rotatividade descentrado (18,9% dos casos de Capote e 7,66% em Cancho Roano), impedem ou dificultam a sua função no fuso, podendo tratar-se de elementos inseridos no topo da roca. No caso da nossa variante 5, nem essa função poderá ser apontada, pelo que desconhecemos qual o motivo para a total ausência de orifícios. O estudo formal e de variedade tipológica (Fig. 2) tem por base o sistema aberto criado por Zaida Castro Curel (1980, p. 138) para os cossoiros dos povoados ibéricos e alterado por Maria Luisa De Sus (1986, pp. 186-188). Este sistema baseia-se nas formas geométricas primárias: cone, esfera e cilindro. O conjunto de Cabeça de Vaiamonte veio acrescentar os tipos em calote esférica (H.) e em dupla calote esférica (I.); e ainda os subtipos simétrica bicôncava (D.d.) e cilíndrico -cónica assimétrica côncava (E.e.). Tal como na maioria dos conjuntos de cossoiros provenientes de povoados proto-históricos, Cabeça de Vaiamonte assiste a uma primazia das formas bitroncocónicas, que a nível funcional são muito mais eficientes do que as cónicas e/ ou cilíndricas (Berrocal-Rangel, 2003, p. 224). As formas bitroncocónicas simétricas são as mais frequentes nos conjuntos de Capote (55,9%), Cancho Roano (54,51%) (Ibidem) e Puig de St. Andreu, Ullastret (37,8%) (Castro Curel, 1980, p. 136), enquanto em Los Castellares (61,4%) (De Sus, 1986, p. 187), Puig d´en Rovira/ La Creueta (62,5%), Castell de la Fosca/ Palamós (54,5%), Cabezo de Alcalá/ Azaila (80%) (Castro Curel, 1980, pp. 136 e 140) e Cabeço de Vaiamonte (50,3%) as formas bitroncocónicas assimétricas são maioritárias. A análise de fabricos teve por base apenas a observação da superfície exterior uma vez que apenas um reduzido número de peças se encontram parcialmente fragmentadas. Com base nesta avaliação macroscópica foram definidos seis grupos técnicos, dos quais os primeiros cinco representam pastas argilosas não calcárias que deverão representar argilas locais-regionais compostas por minerais brancos, sílicas e micas. Apenas o grupo 6 é formado por dois exemplares que se distinguem dos demais, uma vez utilizarem pasta calcária/ caulínitica. Um dos exemplares parece tratar-se de um fundo de cerâmica de paredes finas que foi reaproveitado como cossoiro, uma vez que são visíveis as marcas de polimento das paredes junto ao fundo de pé anelar e a perfuração do orifício, de cariz bitroncocónico, indicia que o mesmo foi efectuado pós-cozedura. O grupo 1 (21%) é talvez o grupo mais característico do conjunto, devido à presença de elementos não plásticos de grande e média dimensão sob a forma de micas prateadas que lhe conferem um brilho único, acentuado pelas superfícies polidas, que se distinguem facilmente dos restantes grupos que apresentam superfícies alisadas, que só em alguns casos recebem uma aguada laranja ou avermelhada. O modo de cozedura A é francamente maioritário, 682 com as pastas de coloração alaranjada e beje-acastanhada a representarem 77,5% do conjunto, face ao modo de cozedura B, de pastas cinzentas ou enegrecidas, com uma expressividade de 22,5%. Um dos aspectos importantes no estudo destes conjuntos é o do peso destes objectos, uma vez que “(…) a espessura do fio depende do peso do fuso(…)” (Castro Curel, 1980, p. 142). No caso de Cabeça de Vaiamonte (Fig. 3), e à semelhança do conjunto de Los Castellares (De Sus, 1986, p. 191), o intervalo de peso entre os 15 e os 20 gr. é o mais frequente (22,1%), seguido dos pesos entre 20 e 25 gr. (18,5%). De qualquer forma, e apesar de uma notável variabilidade de pesos entre 1,89 e 111,15 gr, a verdade é que à semelhança do conjunto de Capote (Berrocal-Rangel & alli, 1994, p. 212), assistimos a uma notável concentração nos valores 16, 18-20 e 24-25 gr. TÉCNICAS DECORATIVAS APLICADAS AOS COSSOIROS DESTE CONJUNTO As técnicas decorativas aqui apresentadas foram aplicadas às distintas faces dos cossoiros: no topo (A.), na aresta superior (B.), na aresta inferior ou lateral (C.) e na base ou fundo (D.). No caso deste conjunto as decorações surgem maioritariamente no topo e na aresta superior das peças, uma vez que seria a zona superior do cossoiro que formaria o encaixe no fuso, e que ficaria visível para quem fiasse usufruísse dessa decoração. A orientação das peças é facilmente reconhecível quer pela decoração, quer pela concentração de elementos não plásticos e pelo desgaste nas bases dos objectos ou pelo diâmetro do orifício para introdução no fuso (topo mais largo, base mais estreita). No caso do conjunto de cossoiros de Los Castellares a decoração surge em 71,6% dos cossoiros, sendo que as técnicas utilizadas se circunscrevem à incisão e impressão (De Sus, 1986, p. 192), já em Capote, 45,66% do conjunto apresenta decoração (Berrocal-Rangel, 2003, p. 225). Esta representatividade aproxima-se daquela a que assistimos neste conjunto, com 43% dos cossoiros a apresentarem decoração. As técnicas decorativas utilizadas, segundo as normas de inventário para a cerâmica utilitária em Arqueologia (Cruz & alii, 2007), foram bastante variadas, sendo que a incisão (42%), o puncionamento (26%) e a aplicação mista destas duas técnicas (10%) se destacam das demais. Curioso ainda notar a presença de um cossoiro com decoração impressa / “estampilhada” 683 Arqueologia em Portugal – 150 Anos por matriz quadrangular preenchida a malha fina, semelhante a muitos fragmentos cerâmicos decorados com esta técnica (Arnaud & alii, 1974-77). MARCAS DE LITERACIA OU MEROS ACASOS? CATALOGAÇÃO DOS GRAFITOS IDENTIFICADOS As inscrições e os grafitos sobre cerâmica, nomeadamente sobre cossoiros, são efectuados com recurso a técnicas distintas, sendo reconhecida a utilização do pontilhado efectuado com o puncionamento de um objecto afilado ou a técnica linear com recurso à incisão da peça. Estas técnicas poderão ter sido utilizadas ante coctionem ou post coctionem, interpretação esta que nos poderá facultar alguns dados sobre a literacia de quem produz ou utiliza estes objectos. Os signos alfabéticos ibéricos surgem representados com frequência, como nos comprovam os achados de Castell de Palamós/Gerona onde surge um cossoiro inscrito com três marcas de pontuação que formam as possíveis palavras (Prescot, 1980, p. 147), Azaila, Margalef com 13 signos inscritos no topo de um cossoiro, Castell de La Fosca em que um exemplar apresenta um total de 17 signos divididos por três grupos de palavras, San Antonio de Calaceite, Las Madrigueras e Los Castellares (De Sus, 1986, p. 195). Na área de âmbito celtibérico conhecem-se até ao momento cinco cossoiros inscritos com pelo menos uma palavra em escrita celtibérica: Ségeda, Botorrita, Monreal de Ariza e Las Ruedas de Pintia (De Bernardo Stempel & alli, 2010, pp. 405-406). Este mesmo signário celtibérico também parece ter sido utilizado isoladamente sob suporte cerâmico como nos demonstram, entre outros, os casos de Castrejón de Capote onde surgem dois signos em uma panela decorada (Berrocal-Rangel, 1989, p. 290, Fig. 32, n.º 9) e o de Cerro de El Berrueco (Salamanca) com um fragmento de cossoiro exumado de um contexto balizado entre o século II a.C. e I d.C., que apresenta dois grafitos incisos no topo que parecem identificar-se com os signos de escrita celtibérica n e u. No entanto, e uma vez que não se conhecem inscrições pré-romanas em Salamanca, os autores deste artigo não arriscam conjecturas acerca da escrita destes grupos, pois como afirmam, trata-se de uma evidência sobre um objecto “portátil” (López Jiménez & alii, 2009, p. 122). Apesar de o uso do alfabeto não ser generalizado a nível popular, e de se conhecerem alguns signos e talvez se tentasse imitar outros (De Sus, 1986, p. 206), será curioso notar a repetição de símbolos, signos e esquemas decorativos utilizados nestes conjuntos peninsulares, que não se encontram restringidos a uma área, surgindo em áreas tanto de influência ibérica como celtibérica. No entanto, e apesar de já ter sido expresso por muitos investigadores (vide Berrocal-Rangel, 2003, p. 237) que existe um conjunto de factores que afastam uma utilização exclusiva destes objectos para fiação, a verdade é que o desconhecimento do seu verdadeiro significado e ausência de leituras viáveis para estes signos isolados, tem impossibilitado a atribuição de novas funções. A leitura de algumas inscrições sobre cossoiros galos tardios, onde surgem pequenas frases e dedicações de carácter erótico tem servido de guia para a interpretação dos exemplares que se apresentam com inscrições ibéricas e celtibéricas (De Bernardo Stempel & alli, 2010, p. 405). No caso do conjunto de Cabeça de Vaiamonte, foi um dos cossoiros com maior número de grafitos que proporcionou uma análise mais cuidada a todos os outros signos entretanto reconhecidos em outros objectos deste tipo. Esse cossoiro apresenta no topo da peça um círculo inciso, com quatro linhas rectas transversais que se dirigem ao orifício e que formam as divisões que recebem os sete signos incisos (Fig. 4). Esta divisão do espaço, bem como os signos, foram efectuados num momento anterior à cozedura (ante coctionem), uma vez que é visível o excesso e transbordo de argila em redor do orifício superior, que terá sido efetuado após a incisão dos grafitos que em alguns casos surgem parcialmente cobertos. A fotografia deste cossoiro foi enviada a alguns investigadores (Prof. Dr. Amílcar Guerra, Dr. António Marques de Faria, Prof. Dr. Joan Ferrer i Jané e Prof. Dr. José Antonio Correa - desde já agradeço a disponibilidade de todos), sem que fosse possível avançar com qualquer leitura. Não obstante, a opinião do Prof. Dr. José Antonio Correa é a de que nesta «pseudo -inscrição» surgem signos que podem ser identificados com o das escritas meridionais e ibérica e que pela extensão de grafitos se deduz claramente que serão textos escritos e não meras marcas de propriedade, ainda que, num primeiro momento não possam ser entendidos2. 2. Opinião transmitida através de e-mail onde o Prof. Dr. José Antonio Correa também sugere a criação de um catálogo de grafitos com indicação de técnicas utilizadas: incisão/ pontilhado, ante/post coctionem. Esta extensão é marcada pelos 89 grafitos identificados (Figs. 8 e 9), dos quais 29 apresentam-se isolados, 12 em par, 18 com três ou mais signos, 24 com repetição do mesmo signo e 6 em sequência alternada entre dois signos, sendo que estes signos parecem pertencer quer ao signário ibérico como ao celtibérico. A maioria dos grafitos recorreu à incisão (85 exemplares – v. Fig.5), apesar de um conjunto diminuto ter sido efectuado com recurso ao puncionamento sob a forma de pontilhado (4 exemplares – v. Fig.6). Estas técnicas foram utilizadas maioritariamente ante coctionem (68 exemplares), apesar de um conjunto significativo de cossoiros (21 exemplares) ter recebido estes signos num momento post coctionem, facilmente reconhecíveis pelas linhas rectilíneas (Fig. 7) que contrastam fortemente com as linhas curvas efectuadas pré-cozedura. A disposição destes grafitos é mais expressiva na aresta inferior ou lateral (C: 47%), seguida da aresta superior (B: 40%) e do topo (A: 13%), não tendo sido identificado qualquer grafito na base (D) destes objectos. POR UM FIO? A ALEGORIA DA EXPRESSÃO NUMÉRICA Tal como referido por outros investigadores, os cossoiros representam o elemento associado à actividade têxtil mais numeroso entre os sítios proto-históricos peninsulares (Berrocal-Rangel, 2003, p. 215). A sua relativa abundância, a que se soma o facto de muitas vezes serem recuperados em conjuntos confinados a um mesmo espaço, fez com que por vezes fossem confundidos com pesos de tear vertical, apesar de não oferecerem a uniformidade de peso que seria necessária para o seu funcionamento (Ibidem). Entre estes conjuntos mais numerosos e emblemáticos refira-se o exemplo de 127 exemplares, dos quais 58 decorados, dispostos sobre o altar de Castrejón de Capote e que num lugar como este nos fazem supor funções distintas para além da fiação (Berrocal-Rangel, 1989, p. 254) podendo ter correspondido a funções mais complexas, cultuais ou comerciais (Idem, 2003, p. 237). Para além dos conjuntos de várias dezenas procedentes da Casa 2 do povoado celtibérico de Los Castellares (Zaragoza) que se encontravam dispostos num suposto colar ou ábaco, ou os 343 exemplares recuperados nas escavações do Edifício A do Palácio -Santuário de Cancho Roano (Idem: 216). Tal como facilmente poderemos constatar, nada que 684 se aproxime do número de cossoiros recuperados em Cabeça de Vaiamonte. Este número excepcional e extravagante de elementos de fiação faz-nos questionar, à semelhança de outros investigadores que se debruçaram sobre conjuntos bem mais diminutos, qual a verdadeira função destes objectos. A total ausência de qualquer referência a uma contextualização estratigráfica, expressa por 38,9% do conjunto, dificulta em muito as leituras que poderíamos efectuar, pelo que neste caso, cingimo -nos à melhor análise possível dos dados que foram disponibilizados. Uma vez que não se conhecem plantas de localização das áreas escavadas, foi uma análise metódica dos cadernos de campo produzidos entre 1952 e 1958 pelo encarregado das escavações, João Lino da Silva (Silva, 1952/1958), que permitiu contabilizar o número de referências efectuadas a este tipo de achado e afastar definitivamente a hipótese de parte deste conjunto poder pertencer a outro sítio arqueológico que era escavado em simultâneo, a villa romana de Torre de Palma. Esta contabilização de referências explícitas a “cossoiros” nos relatórios permitiu aferir que juntamente com a designação “cerâmica” (que se refere genericamente a fragmentos de cerâmica comum, uma vez que o autor dos cadernos de campo diferencia a cerâmica “manual”, “grosseira”, “pintada”, “grega” - campaniense?, “ornamentada” - estampilhada?) representa a categoria artefactual mais mencionada. No total foram isolados 424 contextos distintos que englobam quer contextos estratigráficos referentes a níveis artificiais (p.e. “camada 25-50”), quer contextos mais generalistas (p.e. “mandei abrir uma nova Sonda”) ou mesmo, no caso de alguns relatórios, a referência exclusiva a um novo dia de trabalho. Os “cossoiros” surgem em 277 dos 424 contextos identificados, quase equiparados com a “cerâmica” que surge em 284. No entanto, nos anos de 1953 e 1954 as referências aos “cossoiros” superam qualquer outra categoria de artefactos, sendo assim o achado mais frequente deste sítio arqueológico nesses anos. Note-se ainda que o autor dos cadernos começa por contabilizar os cossoiros quando estes surgem em número inferior a 12, sendo que sempre que o número é superior surgem os pronomes: “poucos”, “alguns” ou “muitos”. Para além da expressividade numérica, que não encontra paralelo em nenhum outro sítio alentejano (Estrela, 2010, pp. 68-69), junte-se o facto de 43% do conjunto ter recebido decoração e 5,4% apresentar 685 Arqueologia em Portugal – 150 Anos um ou mais grafitos. O facto de surgirem traços alfabéticos pode-nos levar a pensar em uma mensagem cuja estrutura nos escapa, como uma forma de escrita que utiliza elementos gráficos para a sua expressão que o emissor/ receptor conhece ou reconhece, seja com todo o seu significado ou já desprovido dele (De Sus, 1986, p. 206). Segundo Luís Berrocal-Rangel (2003, p. 237), esta simbologia chega-nos desprovida de sentido e por isso ignoramos tratar-se de uma linguagem exclusiva destes objectos, que poderá até representar um sistema de contabilidade. Para este sistema de contabilidade muitos investigadores têm tentado uma aproximação funcional devido à concentração em determinados valores de peso. No entanto, e apesar de esta ser uma ideia tentadora, o que este conjunto de 1660 cossoiros veio confirmar é que apesar de algumas concentrações, assistimos a uma frequência dispersa por todos os valores entre os 2 e 70 gr. Esta dispersão poderá ser facilmente justificada pelo próprio processo de produção, sendo que a preparação, secagem e cozedura destes objectos poderá explicar as oscilações de peso, mesmo entre cossoiros que foram produzidos no mesmo molde – como assistimos em alguns destes objectos. Ou seja, a padronização metrológica poderá ter valores aproximados mas não consegue valores absolutos próximos, assistindo a variações acentuadas. Uma vez que desconhecemos os contextos estratigráficos destes achados não podemos avançar com propostas cronológicas estanques, apesar de o tipo de formas e grafitos aplicados (com aquilo que parecem ser signos ibéricos e celtibéricos) serem coerentes com os conjuntos de cossoiros exumados de vários povoados ibéricos e celtibéricos, e muito semelhante ao conjunto datado entre o século IV e II a.C. depositado em Castrejón de Capote (Berrocal-Rangel, 1989, p. 252). Esta semelhança ocorre quer na temática decorativa como na proporção de grafitos (signos ibéricos) representados em 3% do conjunto (Berrocal-Rangel, 1994, p. 223). Apesar desta evidente associação a contextos proto -históricos, uma vez que em época romana ocorre o aparente desaparecimento deste objecto (De Sus, 1986, p. 184), é possível que este conjunto reflicta não só uma larga diacronia como também uma distribuição espacial muito distinta como nos comprovou a análise dos cadernos de campo. A função deste número inusitado de cossoiros neste sítio arqueológico continuará a ser uma incógnita, uma vez que a fiação pressupõe a utilização máxima de dois cossoiros por utilizador: um que funcionaria como contrapeso no fuso e outro aplicado na roca. Apesar de a actividade têxtil parecer irrefutável em Cabeça de Vaiamonte, uma vez que foram exumados um pente de cardar, 75 agulhas/sovelas e 24 pesos de tear, nada parece justificar esta presença excessiva de elementos de fiação que pressuponham um mínimo de 830 utilizadores. Talvez a futura leitura e interpretação dos grafitos que aqui se apresentam, e que serão alvo de um estudo mais pormenorizado, permita avançar com algumas hipóteses que neste momento poderão apontar para um carácter ritual que a ausência de contextos não nos permite acentuar, apesar da grande concentração cerâmica registada neste sítio assemelhar-se a outros depósitos votivos, como Garvão ou Castrejón de Capote. BIBLIOGRAFIA ARNAUD, José Morais; GAMITO, Teresa Júdice (1974-77) – Cerâmicas estampilhadas da Idade do Ferro do Sul de Portugal. I – Cabeça de Vaiamonte – Monforte. O Arqueólogo Português. Lisboa. Série III. 7-9, pp. 165-202. DE SUS GIMÉNEZ, Maria Luisa (1986) – Fusayolas del poblado celtibérico de Los Castellares (Herrera de los Navarros, Zaragoza). I. Tipología y función. Boletín de lMuseo de Zaragoza. Zaragoza. 5, pp. 183-208. ESTRELA, Susana (2010) – Os níveis fundacionais da Idade do Ferro de Mesas do Castelinho (Almodôvar). 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Figura 5 – Pormenor da aresta superior de cossoiro que apresenta vários grafitos incisos ante coctionem com uma orientação centrípeta (onde se reconhece o signo ka). João Almeida. Figura 6 – Pormenor da aresta superior de cossoiro que apresenta vários grafitos pontilhados ante coctionem com uma orientação centrípeta. João Almeida. Figura 7 – Pormenor da aresta inferior de cossoiro que apresenta um grafito (signo be) isolado e inciso postcoctionem. João Almeida 689 Arqueologia em Portugal – 150 Anos Figura 8 – Tabela de grafitos isolados (30), em pares (12) e em sequências alternadas (6) presentes nos cossoiros de Cabeça de Vaiamonte, com indicação de: número de exemplares; execução ante- ou post-coctionem e localização do grafito no cossoiro (A- topo, B - aresta superior, C-aresta inferior ou lateral, D - base). 690 Figura 9 – Tabela de grafitos repetidos (24) e distintos - em número superior a três (18) presentes nos cossoiros de Cabeça de Vaiamonte, com indicação de: número de exemplares; execução ante- ou post-coctionem e localização do grafito no cossoiro (A- topo, B- aresta superior, C-aresta inferior ou lateral, D - base). 691 Arqueologia em Portugal – 150 Anos